Tanto na teoria quanto na prática um produto é sempre mais que o produto. O que quero dizer com isso? Que cada produto que consumimos ou desenvolvemos existe em diferentes camadas que influenciam como as pessoas e o mercado o enxerga e como as empresas e seus times internos devem trabalhar para criar e manter esses produtos.

Não deve existir conversa sobre um Produto (aqui vou usar produto como sinônimo de produto físico, de tecnologia e serviços) sem envolver Marca e Posicionamento.

Resolvi escrever esse texto após acompanhar o caso do Basecamp que ontem (26/04/21) tomou conta do meu Twitter onde os fundadores publicaram um texto falando sobre as novas diretrizes a respeito do trabalho por lá e deixou muita gente perplexa em como no ano de 2021 empresas ainda achem que podem estar em um ambiente apolítico.

Meu foco aqui não é dar minha opinião sobre o que está nesse comunicado da empresa, mas explorar um pouco a reação das pessoas e o problema de pensar o produto apenas como o produto central.

O que é um produto?

Para responder o que é um produto vou recorrer ao Kotler no seu clássico Administração de Marketing:

Many people think a product is tangible, but technically a product is anything that can be offered to a market to satisfy a want or need, including physical goods, services, experiences, events, persons, places, properties, organizations, information, and idea.

Pegando um gancho nessa definição, quero trazer uma ideia sobre o que é um produto que me veio na cabeça durante uma conversa:

Algo que tenha uma troca entre diferentes partes, que tenha uma marca, que tenha elemento transacional, seja um conhecimento, seja um produto físico, seja um software ou seja a entrega de um serviço que tem um escopo e um tempo.

No primeiro artigo que escrevi sobre Marketing de Produto, trouxe a seguinte definição:

Um Produto é uma promessa. Uma promessa de que irá resolver algum problema. Um conjunto de atributos e valores que cada um de nós irá enxergar. Os produtos podem ser tangíveis, intangíveis ou ambos.

Dessas três definições podemos entender que produto é muito além de algo tangível e é tudo aquilo que satisfaz um desejo e uma necessidade (ou um job) e entrega uma promessa relacionada a solução de algum problema.

Além disso, um produto tem diferentes camadas que vão além do core:


5 Níveis de Produto


Essa imagem acima também está no livro Administração de Marketing e para cada uma das camadas vou usar exemplos do livro.

No core temos o que as pessoas realmente compram. Por mais que tenha um desejo ou um job a ser resolvido e sabemos que tem um lado emocional e social para a compra, no fim existe algo concreto do que foi comprado e esse é o core.

A hotel guest is buying rest and sleep. The purchaser of a drill is buying holes. Marketers must see themselves as benefit providers.

Tenho percebido que o core é onde a maioria das empresas enxerga o que é seu produto. Isso gera o problema clássico de Miopia em Marketing, mas é comum as empresas responderem a pergunta sobre “qual seu produto” com a definição central do que entregam.

Indo um nível acima temos o basic product. Esse é o nível onde se pega os benefícios principais e incorpora na definição do produto.

Thus a hotel room includes a bed, bathroom, towels, desk, dresser, and closet.

Na terceira camada vamos ter o expected product, ou seja, as expectativas do mercado dos clientes ideais (atributos e condições) são incorporadas a definição do produto da empresa.

Hotel guests minimally expect a clean bed, fresh towels, working lamps, and a relative degree of quiet.

Uma camada acima temos o augmented product. Nessa camada é entregue alguma coisa que os clientes não estão esperando e suas expectativas são superadas.

In developed countries, brand positioning and competition take place at this level. In developing and emerging markets such as India and Brazil, however, competition takes place mostly at the expected product level.

Na camada mais acima de todas vamos ter o potential product. Aqui é uma transformação que pode acontecer no futuro, mas vai envolver todas as possíveis transformações que podem ocorrer para expandir o que significa o produto da empresa.

Here companies search for new ways to satisfy customers and distinguish their offering.

Como falei, vejo que as empresas costumam enxergar seu produto apenas no core enquanto o mercado vê em todas as camadas, mas na minha opinião, mais fortemente nas camadas além da oferta central.

Agora que já posicionei como eu enxergo o produto trago pra conversa o que me inspirou escrever esse post.

Marca, valores, posicionamento e o produto

Um tempo atrás cometi o erro de entrar em um debate no Twitter com o Ryan Singer e o Jason Fried sobre marca, produto e posicionamento.

Tudo começou porque respondi a um tweet onde elogiavam a Apple sobre escolhas a serem feitas no produto que significavam, muitas vezes, lançar algo que já havia sido lançado por sistemas Android e Windows.

A minha resposta foi simplesmente dizer que a Apple poderia se dar ao luxo de fazer isso porque a própria marca e posicionamento de mercado sustentavam.

Enquanto a Microsoft luta hoje para ser vista como inovadora e o Android ser pulverizado em diferentes marcas (ex.: Samsung, Motorola, etc.) a Apple construiu seus produtos em cima de um posicionamento muito específico.

Quando isso se perdeu após a saída do Steve Jobs a empresa passou por dificuldades mas com o seu retorno, todos aqueles valores e crenças do fundador sobre o produto, a marca e o posicionamento voltaram.

A conversa foi para um caminho onde a defesa de que eu estava errado era de que a marca e posicionamento se constrói. Sim, mas não significa que as coisas tenham uma ordem definida. É uma construção mas todo produto parte de algum conjunto de valores das próprias pessoas que o desenvolve.

O produto nunca é só o produto.

Em um momento eu perguntei: “Vocês acham que outra empresa poderia ter lançado em 2020 um cliente de email, com menos funcionalidades do Gmail e ainda ser considerado relevante?”

Confesso que não lembro exatamente a resposta, mas foi algo que confirmava o que eu estava dizendo, mesmo que não admitissem.

Óbvio que a resposta para a minha pergunta é não.

Só o Basecamp com seus fundadores cheios de opiniões forte e com um histórico de falar sobre uma nova forma de trabalhar (seja como lidar no ambiente de trabalho, seja sobre trabalho remoto ou em como lidar com o desenvolvimento de produto), o que inclui a forma de gerenciarmos nossos emails, poderia lançar algo como o Hey.

No texto em que o Jason publicou diz:

We make project management, team communication, and email software.

Isso está no início da parte do artigo que diz “não esquecermos o que fazemos aqui”.

Mas aí é que está o problema. O Basecamp é o que é por causa do seus produtos de gestão de projetos, comunicação dos times e email?

Tira toda a camada de valores que os fundadores pareciam defender, valores esses que por anos eram diferentes quando olhávamos para o mercado de tecnologia, o que sobra?

Sobre um produto de gestão de projetos entre muitos que existem no mercado. Como eu vi em um tweet:

É uma to-do list dos anos 90.

Pesado, mas no core é isso mesmo. Todos os produtos estão muito atrelados aos valores sobre como se trabalhar no mundo de tecnologia. Valores que são sim políticos.

O que os líderes do Basecamp divulgaram ontem sobre as novas diretrizes sobre como serão as coisas no ambiente de trabalho daqui pra frente, principalmente o ponto de não ter mais discussões políticas e sociais na conta corporativa conflita muito com a imagem de empresa que sempre passaram ter.

Assim como eu comentei na thread do caso Apple que nenhuma outra empresa poderia causar o impacto com um produto tipo o Hey (cliente de email), outras empresas poderiam se livrar mais facilmente dessa decisão, e não o Basecamp.

Não quero dizer aqui que por causa do comunicado o negócio do Basecamp vai acabar, mas pode ser que uma parte importante dos seus clientes e admiradores deixem de trazer todos os valores que fazia a marca deles ser o que é hoje e como se posicionam no mercado e passem a ver o produto pelo produto, um software de gestão de projetos.

E isso nunca será bom, o mercado ver você apenas pelo nível mais básico do que você é.

O quanto você se preocupa com todas as camadas do seu produto?

As empresas sabem o que é seu core e devem fortalecer isso quando querem crescer e expandir. O propósito central onde a empresa e o produto foram construídos é essencial. O que quero aqui não é ignorar esse fato.

Mas o core da empresa não são as atividades do dia a dia. Não é a decisão do CEO. Não é o trabalho do Diretor de Vendas. Não é a priorização do Diretor de Marketing e muito menos o que o Diretor de Produto está fazendo.

Não é isso que define, apesar de fazer parte.

O core da empresa é o melhor produto que entrega no mercado.

Apesar da gente conseguir definir com uma frase ou com poucas palavras o que é esse core, existem outros elementos que estão ao redor e que influenciam muito.

Olhando o produto em si que nós desenvolvemos e colocamos no mercado, temos a mesma visão.

Entender o porquê as pessoas compram da gente, como nos enxergam, quais são os valores que associam ao nosso produto e como isso tudo forma de fato a definição completa sobre o que é esse produto é essencial.

Talvez o Basecamp (ou as nossas empresas com seus produtos) ainda ache que tudo que fazem fora do software de gestão de projetos, comunicação e email não define o que fazem como atividade fim. É “apenas Marketing” ou é “apenas a nossa visão de mundo” mas que não está ligado ao produto central.

Está na hora de pararmos de pensar em construção de produto, de marca, de Posicionamento e valores como coisas separadas. Que é fácil enxergar as fronteiras e defini-las. Mesmo no início, no dia 0 do desenvolvimento de produto, sempre terão elementos além do core.

O produto não é só o produto.